Há versos que nos acompanham a vida inteira e são o conteúdo da caixinha de primeiros socorros para dói-dóis metafísicos. Vou desenrolar um para ti. Olha, este é do Rilke e diz assim "Um pastor apoia-se no último candeeiro na penumbra". Esmaga, não é? Fico a saber que se praticasse durante duzentos anos a escrita nunca chegaria perto de um verso destes.
Prefiro imaginá-lo um pastor de almas, mas para o caso é indiferente. Às vezes vejo revoadas de cacimba na luz amarela do candeeiro. Ele, por baixo, apoia-se, não com o corpo encostado, mas com a mão no fim do braço ligeiramente flectido. À frente a escuridão.
Há muito que a mais pequena vaidade e o mínimo orgulho partiram, como dois animais rastejantes que lhe saíssem do fundo das calças sem deixar rasto pelo horizonte...
Não sei porquê mas acho que, naquele momento, ele olha as coisas - a lua por ex - e as coisas já não têm nome. A lua não tem o nome de lua, não se chama lua, e nem sequer diz aquela coisa redonda e branca ali no céu - que os conceitos de nada lhe servem. Esqueceu-os. É como se entrasse na última dimensão - a dimensão do indizível. Depois vejo-o partir com um grande sorriso e desaparecer na escuridão.
É como se no último candeeiro a sensação de irrealidade de tudo seja a que nos aguarda - a que não se esperou, ou se esqueceu ou se adiou através de todos os ensinamentos e aprendizagem: a derradeira solidão. Ele está despido de palavras, de conceitos e as roupas só o desnudam mais. A lua destacada no céu...
Tudo lhe é estrangeiro sem ser estranho: como se ao mesmo tempo esse mesmo pastor estivesse numa exposição a olhar um quadro onde se passasse a vida real e se visse encostado ao último candeeiro (detém-se a observar o vapor da ua respiração...).
Mas não, nem sequer isso - ali já nem a ilusão o socorre. Não se formula um pensamento, uma sombra de devaneio como um pássaro escuro noite dentro. É só mesmo a sensação de irrealidade de tudo. Não sei é por que o vejo sempre com com um grande e silencioso sorriso a desaparecer na escuridão. Mas é sempre assim.
Releio o que te acabei de escrever e penso que nunca se deve ter ideias; que só os ingénuos as têm; porque as ideias ganham vida própria, comunicam-se, dão meia volta ao mundo e, quando estafadas, querem morrer. Mas só há uma maneira das ideias morrerem - é a de matarem o criador. Desde Sócrates a Nietzsche até ao mais modesto dos homens foi assim. Mas como fui eu ter esta ideia, e a imprudência que foi comunicá-la!
Quando muito deve-se sugestioná-las. Um comentário aqui, outro acolá e a coisa encaminha-se. Assim, quando der para o torto e nos vierem bater à porta poderemos dizer "sim, é certo, estive lá, mas não ouvi e muito menos falei, tenho pena mas não sei do que se trata".
Bom, vou catar pulgas ao cão. Ele anda sem pulgas e um cão sem pulgas é como um jardim sem flores. Puxa-me a mão com a pata a pedir "vá lá, só duas" e acabo por aceitar sempre o desafio. Até porque gosto de catar as pulgas que o Sebastião não tem - principalmente as que ele não tem. Mas a caçada não pode ser de qualquer maneira - tem de ser convincente. Não vale revirar-lhe o pelo todo do avesso que ele salta logo como a dizer "andas à procura de um cágado?". Tenho de me convencer primeiro e só depois ele se convence. Separo-lhe o pelo devagar até à pele com a ponta dos dedos e examino bem de perto. De papo para o ar, já refastelado, ele mete a língua de lado como a dizer "estás a ir bem, mas ainda está frio, frio.". Prossigo e, subitamente "Olha, olha, apanhei uma, é enoooorme!!!" E ele, doido, em pulgas, salta, a pedir-ma. "Tás maluco, ainda apanhavas uma congestão". E regressa de novo para o colo. Meu Deus, o que ele gosta da caça à pulga invisível! E o pior é que eu ainda gosto mais! Vê, é incrível, ele está cheinho delas!!!!!!!!
7 comments:
provérbio não sei d'onde: "Não julgues alguém pelas suas respostas, mas pelas suas perguntas!"
Provérbio de Queijas: "ouve os silêncios e não julgues ninguém"
Nano
Um chinês: Quando o céu joga uma tâmara, abra a boca. :D
bjinhos
Há versos que nos acompanham a vida inteira e são o conteúdo da caixinha de primeiros socorros para dói-dóis metafísicos. Vou desenrolar um para ti. Olha, este é do Rilke e diz assim "Um pastor apoia-se no último candeeiro na penumbra". Esmaga, não é? Fico a saber que se praticasse durante duzentos anos a escrita nunca chegaria perto de um verso destes.
Prefiro imaginá-lo um pastor de almas, mas para o caso é indiferente. Às vezes vejo revoadas de cacimba na luz amarela do candeeiro. Ele, por baixo, apoia-se, não com o corpo encostado, mas com a mão no fim do braço ligeiramente flectido. À frente a escuridão.
Há muito que a mais pequena vaidade e o mínimo orgulho partiram, como dois animais rastejantes que lhe saíssem do fundo das calças sem deixar rasto pelo horizonte...
Não sei porquê mas acho que, naquele momento, ele olha as coisas - a lua por ex - e as coisas já não têm nome. A lua não tem o nome de lua, não se chama lua, e nem sequer diz aquela coisa redonda e branca ali no céu - que os conceitos de nada lhe servem. Esqueceu-os. É como se entrasse na última dimensão - a dimensão do indizível. Depois vejo-o partir com um grande sorriso e desaparecer na escuridão.
É como se no último candeeiro a sensação de irrealidade de tudo seja a que nos aguarda - a que não se esperou, ou se esqueceu ou se adiou através de todos os ensinamentos e aprendizagem: a derradeira solidão. Ele está despido de palavras, de conceitos e as roupas só o desnudam mais. A lua destacada no céu...
Tudo lhe é estrangeiro sem ser estranho: como se ao mesmo tempo esse mesmo pastor estivesse numa exposição a olhar um quadro onde se passasse a vida real e se visse encostado ao último candeeiro (detém-se a observar o vapor da ua respiração...).
Mas não, nem sequer isso - ali já nem a ilusão o socorre. Não se formula um pensamento, uma sombra de devaneio como um pássaro escuro noite dentro. É só mesmo a sensação de irrealidade de tudo. Não sei é por que o vejo sempre com com um grande e silencioso sorriso a desaparecer na escuridão. Mas é sempre assim.
Nano
Releio o que te acabei de escrever e penso que nunca se deve ter ideias; que só os ingénuos as têm; porque as ideias ganham vida própria, comunicam-se, dão meia volta ao mundo e, quando estafadas, querem morrer. Mas só há uma maneira das ideias morrerem - é a de matarem o criador. Desde Sócrates a Nietzsche até ao mais modesto dos homens foi assim. Mas como fui eu ter esta ideia, e a imprudência que foi comunicá-la!
Quando muito deve-se sugestioná-las. Um comentário aqui, outro acolá e a coisa encaminha-se. Assim, quando der para o torto e nos vierem bater à porta poderemos dizer "sim, é certo, estive lá, mas não ouvi e muito menos falei, tenho pena mas não sei do que se trata".
Nano
Aquele provérbio chinês da tâmara é um doce.
Nano
Bom, vou catar pulgas ao cão. Ele anda sem pulgas e um cão sem pulgas é como um jardim sem flores. Puxa-me a mão com a pata a pedir "vá lá, só duas" e acabo por aceitar sempre o desafio. Até porque gosto de catar as pulgas que o Sebastião não tem - principalmente as que ele não tem. Mas a caçada não pode ser de qualquer maneira - tem de ser convincente. Não vale revirar-lhe o pelo todo do avesso que ele salta logo como a dizer "andas à procura de um cágado?". Tenho de me convencer primeiro e só depois ele se convence. Separo-lhe o pelo devagar até à pele com a ponta dos dedos e examino bem de perto. De papo para o ar, já refastelado, ele mete a língua de lado como a dizer "estás a ir bem, mas ainda está frio, frio.". Prossigo e, subitamente "Olha, olha, apanhei uma, é enoooorme!!!" E ele, doido, em pulgas, salta, a pedir-ma. "Tás maluco, ainda apanhavas uma congestão". E regressa de novo para o colo. Meu Deus, o que ele gosta da caça à pulga invisível! E o pior é que eu ainda gosto mais! Vê, é incrível, ele está cheinho delas!!!!!!!!
Favor ser feliz. Agora é que é. Nano
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