10 May 2011

A mulher que só tem gémeos

in, Revista Sábado



Há quem estrangule os gémeos e os atire ao rio, para que as águas levem o azar para longe; alguns matam apenas o segundo bebé a nascer; os mais radicais acabam com as duas vidas à nascença; e outros, envergonhados por assassinarem os próprios filhos, agora que a tradição começa a cair em desuso, alimentam-nos com excrementos de animais, que lhes provocam mortes lentas e dolorosas. Gladys Bulinya preferiu criá-los. Tem 35 anos e seis pares de filhos gémeos. Em Nzoia, aldeia no Noroeste do Quénia, a 385 quilómetros de Nairobi, ninguém lhe dirige a palavra e os que o fazem é para lhe chamarem bruxa ou “mama mapacha” (“mãe de gémeos”, em suaíli).

Para os bukusu, tribo maioritária no Quénia a que Gladys pertence, o nascimento de gémeos é uma maldição que traz desgraça e morte à família. Durante séculos, os bebés foram assassinados às claras. Hoje, garantem os bukusu, a tradição já não é levada à letra. “Sabem que é um crime, daí dizerem que já não acontece. Mas a comunidade é tão remota e vive tão afastada de qualquer autoridade que é impossível saber se os matam ou não”, diz à SÁBADO Joana Socías, correspondente do El Mundo em Nairobi.

Depois de ver a história de Gladys na BBC, a espanhola foi à aldeia entrevistá-la. Além dos seis filhos da mulher, com estômagos inchados pela má nutrição, não viu um único par de gémeos. Mas testemunhou a hostilidade com que a mulher e os filhos são tratados: “Ninguém se aproxima da casa, uma barraca modesta de argila, nem lhe dirige a palavra. A única pessoa que lhe falou enquanto lá estive foi um tio, para lhe dizer que ela era a vergonha da comunidade.”


É assim desde que John e James nasceram, em 1993. Gladys tinha 16 anos e andava na escola quando engravidou. No dia do parto, mal viu que, em vez de um, tinha dois bebés, o namorado desapareceu. Com medo que lhe matassem os filhos e sabendo que não podia voltar para casa dos pais – “a minha cultura não me permitia fazê-lo com gémeos” –, Gladys deixou-os no hospital.

De volta à casa paterna, foi enviada para uma aldeia vizinha, para trabalhar como criada. Conheceu o marido, David Chesoli, e casou, em 1998. Tudo parecia correr bem (até com os gémeos, adoptados pelo avô paterno, que, por ser de outra tribo, achava um disparate a ideia da maldição).

Mas Gladys – que hoje sabe sofrer de uma condição que leva os seus ovários a produzirem e libertarem sempre dois óvulos de cada vez (“Acho que não é grave”) – engravidou de novo. No dia em que Duncan e Dennis nasceram, foi expulsa pelos sogros. “Disseram que lhes tinha levado má sorte e contaminado a família.”

Desesperada, voltou a casa dos pais, que também lhe fecharam a porta e a mandaram ir viver com um vizinho mais velho, que precisava que lhe lavassem a roupa. Gladys tinha 21 anos e Robert Namungu mais 20. Passados meses, faziam vida de casados. Tudo correu bem até 2003, quando Mercy e Faith nasceram.

Os pais dele escorraçaram-na de casa, mas Robert acompanhou a mulher. Juntos, construíram uma barraca, onde viveram até Junho de 2005. Gladys tinha então encontrado trabalho numa escola, como cozinheira. Fora difícil. Na aldeia, onde lhe chamavam bruxa e a consideravam amaldiçoada, ninguém lhe queria falar ou tocar (se o faziam iam logo lavar-se), quanto mais dar-lhe emprego. O nascimento de mais dois gémeos, Carren e Ivy, deitou tudo a perder.
Expulsaram-nos da barraca, que tinham erguido no terreno da escola. Mesmo assim, Robert não a abandonou. Isso acabou por acontecer em 2007, quando Purpose e Swin nasceram. Cinco pares de gémeos eram de mais: “Vendeu a terra sem me dizer. Um dia chegaram os novos proprietários e tive de sair.”

Uma amiga deu-lhe abrigo numa aldeia das redondezas, onde começou a trabalhar numa leitaria, mas Robert procurou-a e ela voltou a engravidar. Quando Baraka e Praise nasceram, em Julho de 2010, já ela estava novamente sozinha e sem emprego. Nunca mais soube do marido, que nem conhece os filhos de 8 meses.

Com os cinco pares de gémeos, Gladys voltou a Nzoia. Construiu uma barraca, laqueou as trompas e hoje afirma que não quer saber “de homens nem de sexo”. Lavava roupa no rio para ganhar umas moedas e comprar milho. No mês passado, a água contaminada que bebia do rio provocou-lhe febre tifóide. “Todos me abandonaram menos Deus”, disse ao El Mundo. Estava enganada: depois de a reportagem ser publicada, foi acolhida num mosteiro perto da fronteira com o Uganda. É lá que vive, com os filhos. Pela primeira vez na vida dormem em camas.

No comments: