Foi o meu melhor amigo, entre o final da adolescência e os primeiros intas. Depois a vida (se bem que fiquei sempre a pensar se teria sido alguma coisa que eu tivesse feito ou que não fiz ou talvez que tenha dito?) afastou-nos.
Quando nos conhecemos percebemos muito rápido que os níveis de parvoíce e anormalidade eram muito compatíveis e ficámos inseparáveis. Fui muitas vezes a Faro visitá-lo e ele vinha a Lisboa. A primeira vez que fui a Faro disse-me que tinha vivido no Refúgio Aboím Ascensão, que era um menino da rua. Sempre a gozar.
Chamei-lhe nomes mas insistiu tanto que quase acreditei. No entanto a forma como admirava e se orgulhava da sua mãe era enternecedora e não enganava ninguém. Cedo percebi que era muito parecido com ela!
Partilhámos anos de crescimento e aprendizagem e muito do que sou hoje também é Filipe.
Tinhamos um sinal para quando nos cruzávamos com situações ou mesmo pessoas nonsense: em vez de fazermos o 'looney sign' (aquele de bater com um dedo na testa) batiamos com os 5 dedos em simultâneo na frente da testa. Incontáveis as vezes que bastava olharmos um para o outro e lá iam, em simultâneo, os 5 dedos dele e os meus às respetivas testas. Ríamos muito. O Filipe tinha o melhor humor.
Alguém, um dia na praia lhe disse que tinha as costas em forma de bacalhau, acho que terá sido a Leninha de Vilamoura: ele era magro e tinha o torso em V. Durante muitos anos ficou o "costinhas de bacalhau".
Houve um verão que fizemos o país de Centro a Sul, de Sul a Norte e de Norte a Sul no Nissan Almera branco. Pelo meio parávamos para concertos. Foi épico. Lisboa->Algarve -> Guarda -> Castelo Branco -> Gerês-> Algarve.
Detestava que lhe chamassem ‘intransigente’ ou ‘intolerante’... Na verdade não o era, mas para muitos passava por vestir essa capa, principalmente quando se tratava da defesa de determinados ideais. Era das pessoas mais inteligentes que conheci. Obstinado e sempre consistente nas suas ideias.
Com o tempo apurou a forma como defendia as suas causas, mas não sem piorar antes de melhorar. A velha máxima do saudoso coletivo pseudo-hardline "Caminho de Ferro": ‘se não estás dentro do comboio, estás debaixo dele’, chocou alguns incautos desconhecedores do refinado humor do Filipe Correia.
Zangou-se a sério comigo uma vez, já nem sei por que parvoíce, e castigou-me com silêncio. Estava ele na Suécia num estágio, em Malmö, o que tornou tudo mais difícil. Quando voltou lá nos perdoámos.
Veio viver e trabalhar para Lisboa, permitindo-nos manter a nossa amizade mais próxima. Conheceu e "aprovou" o meu marido.
Era um bom cozinheiro. Mantinha uma dieta vegana e fazia o que eu chamava de "cozinha à engenheiro Correia". Não preparava os alimentos das formas tradicionais, fazia tudo da maneira dele, como ele sabia, e inventava mecanismos muito dele para fazer as coisas, mas tudo resultava! Era muito prático e pragmático, muito engenheiro e engenhoso.
A propósito de engenheiros, adorava o Dilbert. Graças a ele subscrevi as daily strips do Dilbert e passou a ser outra paixão partilhada.
Dizia muito que ia reformar-se aos 35. Que ia "encher o rabo de notas" sucumbindo temporariamente ao capitalismo, em Lisboa e depois, aos 35, ia viver para Mar e Guerra e subsistir dos rendimentos.
Era muito organizado e bom com o dinheiro. Dizia muitas vezes, com um sorriso nos lábios enquanto contava alguma ciganice inócua que tinha feito, que o capitalismo trazia à tona o pior de si. Tinha a sua vida muito bem estruturada financeiramente. Antes dos 30 anos tinha já, para além do plano de Mar e Guerra (casinha que por acaso cheguei a visitar), uma boa almofada imobiliária, chamemos-lhe assim, entre Lisboa e Faro. Brincávamos muito com isto, chamávamos-lhe orgulhosamente o proprietário da Imobiliária Correia.
Perguntei-lhe pouco depois dos 35 como planeava a questão da reforma porque os 35 já tinham passado e ele lá disse que esse plano tinha que ser adiado por mais uns anos... mas poucos!
Era um homem do mar, da praia, da vida simples mas com qualidade. Chamava "Paraíso" ao Algarve e costumava praguejar contra os "turistas" que lhe 'invadiam' o Algarve no Verão. Adorava vê-lo fingir-se zangado com a afluência de gente no Algarve. Resmungava e dizia coisas hilariantes que nada tinham a ver com ele, mas dizia só porque sabia que tinha piada, a imagem do jovem local aborrecido com o facto de estarem a ocupar os seus "spots". Houve uma fase em que se auto-chamava marroquino e o Algarve era Marrocos, claro.
Não gostava de multidões. Gostava de concertos mas pequeninos como tínhamos na adolescência, na "cena HC", coisas muito "familiares". O Filipe preferia a vida pacata.
Adquiriu gosto pelas duas rodas e andava de bicicleta que nem um louco. Em Lisboa começou a dar-se com a boa gente da "cena" mas agora "das bicicletas". Mandou-me o texto que dá para ler aqui na página 3, sobre uma experiência num Alleycat em Lisboa, antes de ser publicado. Dá para captar o seu bom sentido de humor. Foi bom reler e reler e reler, nestes dias.
Gostava de me oferecer livros sobre temas fortes e estruturantes. Gostava de estimular o pensamento critico nos que o rodeavam.
Um dia tivemos uma discussão gigante (que ele ganhou, claro) sobre a equivalência entre um litro e um kilo. Sempre que podia gozava-me com as conclusões e com as coisas parvas que foram ditas durante essa discussão.
Ofereceu-me uma carteira que adoro e que nunca mais deixei de usar.
Tinha orgulho do meu trabalho (quando eu estava na Oracle - ou adorava o merchandising e de ter os calendários de formação antes de toda a gente hehe). Preocupava-se comigo, defendia-me, era muito meu amigo e até mais ou menos quando a minha filha tinha um ano, quase dois mantivémos-nos próximos. Fomos despegando-nos a pouco e pouco... perdi a noção de como isso aconteceu, mas fomos ficando distantes.
Foi e sempre será importante na minha vida. Ajudou-me a crescer, tentou ajudar-me mais e eu nem sempre deixei e sei que nem sempre o ajudei quando também devia e nem sempre ele me deixou. Escolhas... choices.
Sei que me queria bem, tal como eu a ele. Fui sabendo dele, ou pelas mensagens de aniversário (que este ano não trocámos) ou por amigos comuns. Soube que estava feliz, que teve duas filhotas - que julgo serem um pouco mais novas que o meu filho.
Mas não soube da doença estúpida que o assolou, nem da estóica luta contra a mesma.
Estas notícias todas de uma vez apanharam-me de surpresa. Não estava à espera desta, nem preparada estava tão pouco. Achava que um dia íamos largar os orgulhos e as faltas de tempo e íamos falar novamente.
Ainda estou aqui a digerir a sua partida. Não sei como a vou aceitar. O que pode ter ficado por dizer.
Pensei que iamos "ter a vida toda" para nos retomarmos, para fazermos "resume" na nossa amizade. Sou uma "estúpidazinha", sim eu sei.
Parte-me o coração pensar na infinita falta que vai fazer às filhas e à companheira. Toda a força para elas, agora e para sempre.
43 anos é demasiado cedo para partir.
Argh.